Manhã de segunda-feira.
Acordo e sinto aquele cheirinho de pão quentinho pelo corredor. Chego na cozinha e encontro a mesa de café posta e nada de Dona Lourdes.
A julgar pelo café quentinho e o pão fresquinho, ele esteve por ali há pouco.
Reparo que tem roupa pendurada no varal.
Reparo que tem roupa pendurada no varal.
-
Que estranho… ela anda muito misteriosa. Só vem em casa pra comer
e tomar banho… acho que nem dormindo aqui está...
No
meio do caminho alguém desliga o alarme que, geralmente, desligamos
quando chegamos no hall do prédio ou direto nos aparelhos de
interfone.
Muito
estranho.
Chego
na portaria e, ainda no hall, tiro o celular do bolso da calça pra
chamar o Uber. Instantes depois, ele toca: era Dona Lordes!
-
Alô, Seu Gil? Aqui é Lourdes, Lourdes falando!
-
Onde a senhora está? O que está acontecendo? Que sumiço estranho é
esse?
-
Cruzes… nem um bom dia, heim bocó? Educação aí passou longe,
eita lelê… coitada da falecida Angelina, sua mãe… te educou tão
bem… TSC TSC TSC (ela faz barulhinhos estalando a língua,
condenando minha atitude)... Estou ligando pra avisar que caiu um
papel do seu bolso, quando sacou o telefone, seu ma-la-gra-de-ci-do
(fala, silabicamente).
-
Como a senhora sabe disso??
Ela dá uma risada alta, tão alta, mas tãããããão alta, que deu pra ouvir sua nada discreta gargalhada ecoando na garagem.
- Eu tudo vejo, Seu Gil! E, por falar nisso: seu Úbe chegou, bocó. E não se esqueça de fechar o portão, porque o filho do Seu Carlos do 802 largou tudo aberto pela manhã. Aquele traquinas! Mas, como tudo vejo: avisei Seu Carlos.
Ela dá uma risada alta, tão alta, mas tãããããão alta, que deu pra ouvir sua nada discreta gargalhada ecoando na garagem.
- Eu tudo vejo, Seu Gil! E, por falar nisso: seu Úbe chegou, bocó. E não se esqueça de fechar o portão, porque o filho do Seu Carlos do 802 largou tudo aberto pela manhã. Aquele traquinas! Mas, como tudo vejo: avisei Seu Carlos.
-
Não é possível... Nem eu vi o carro daqui de dentro! E como que a
senhora tem sabido tando dos vizinhos? Tem caroço nesse angu!
-
Não tem angu nenhum! Aliás, daqui a pouco preciso subir pra pensar
no que fazer de almoço.
-
Subir? Acho que estou entendendo …
-
Aproveite que a Dona Marina está chegando da caminhada e avise a ela
que o jornal dela está na caixa de correspondências.
-
Mas, como que a senhora sabe que ela está chegando?
Mal
acabo de falar, Dona Marina surge na porta do hall.
-
Olá, Sr. Gil! Bom dia! Bem que Dona Lourdes falou que o encontraria
aqui e que teria um recado pra mim…
-
Ah… Sim… é… seu jornal. Ele está na caixa de correios…
-
Ah, muito obrigada, querido! Bom dia!
-
Bom dia...
Olho
pra câmera do hall e tenho uma suspeita. Coloco a mochila no chão e
ando em direção à garagem, ainda com o celular no ouvido.
-
Bocó, o Úbe tá esperando... Onde o senhor tá vindo, digo, indo?
Esqueceu a mochila no chão.. olha, olha! Mochila no chão espanta
dinheiro!!
Vou
até à garagem do prédio e vejo que a luz do quartinho está acesa. Paro diante da porta e
abro-a vagarosamente. Bingo: lá estava nossa desaparecidinha!
-
DONA LOURDES!
-
AAAAI, QUE SUSTO! - grita, enquanto derruba no chão um prato de
plástico vermelho cheio de biscoitos de polvilho e uma caneca de
achocolatado (diet, que fique claro).
-
Mas o que a SENHORA está fazendo aqui?
-
Eu é que pergunto o que o SENHOR está fazendo aqui! HRUM! Seu úbe
tá lá, esperando! Alá… (aponta para o monitor e dá um tapa na
coxa esquerda) – Xi… foi embora. Viu, bocó! Vai perder
estrelinhas no app… coinfeito...
Ela estava aboletada na sala de monitoramento do prédio!
Ela estava aboletada na sala de monitoramento do prédio!
Quando
abri a porta, a cena foi muito inusitada: ela havia transformado a
sala de monitoramento num acampamento: na estante onde deveria estar
o material de limpeza, ela organizou o “material de lanche”:
pães, biscoitos, cafeteira e sanduicheira. Até nossa fritadeira a
ar estava lá. Uma cadeira de praia (que fica no terraço), com uma
bela manta jogada em cima; ao lado, numa mesinha, um caderno de
anotações com caneta e uma lupa (pra quando esquece de levar os
óculos); na janela, nossa cortininha de voal da janela da cozinha; a
bolsa de lona vermelha entreaberta e roupas aparecendo, um
travesseiro e a TV de 14 polegadas do
escritório que, segundo ela, havia levado para arrumar na sexta-feira. Ou seja: ela tornou o lugar super habitável e cheio de crochet pra todo lado. Muito crochet! MUITO!!! Era crochet até na descarga do banheiro!
escritório que, segundo ela, havia levado para arrumar na sexta-feira. Ou seja: ela tornou o lugar super habitável e cheio de crochet pra todo lado. Muito crochet! MUITO!!! Era crochet até na descarga do banheiro!
-
Vamos, explique-se! Explique-se muito bem amparada em uma boa
justificativa porque tem uma renca de gente no
prédio chateada com a senhora, de tando sair falando delas de um pra
outro...
-
Gente… mas o que eu fiz? Sou só uma senhora indefesa, e honesta, e
humilde e amiga… e… e., cof cof (tossidinhas chamadoras de perdão
que não funcionavam mais comigo)… não estou entendendo por quê
desse disparate para com minha pessoa...
-
Dona Lourdes Maria de Souza, a senhora não me enrola com esse papo
doce! Trate de ir se explicando.
-
Papagaio… quando ele me chama pelo nome todo, não é bom – fala,
coçando o alto da cabeça.
-
Não está nada bom! Anda, desembucha! Estou aguardando.
-
Enfim.. bem, Seu Gil, tenho uma explicação muito plausível…
-
E qual seria essa explicação?
-
Primeiramente achei que o Juca, o porteiro, estava cansado,
cabisbaixo, meditabundo, semicunsfláustico…. Aí, dei folga pra
ele.
-
Como assim? A senhora nem é síndica!
-
Dona Lourdes.. “ficar de olho” é só maneira de se falar…
-
Ué… sou bem mandada.. tão bem, mas tão bem, que dei folga pro
porteiro para, euzinha mesma, poder tomar conta da casa mais vigiada
do nosso bairro: a nossa!!! “êêêê!!!” - ela faz carinha de
festa, a qual não é correspondida por mim.
-
Como assim?
- Bem… Serei sincera com o senhor (ela se levanta, arqueia as sobrancelhas e fica batendo as pontas dos dedos de uma mão na outra): o senhor sabe que sou apaixonada pelo BBB, não é mesmo?
- Ô! Se sei...
- Pois bem. Desde que o Big Brother acabou que eu estava sentindo, assim, um vaziiiiiiio no meu dia, sabe? Aquele maraaaaaasmo (ela arqueia mais ainda as sobrancelhas e inclina a cabeça para um lado e para o outro, na hora em que estica as vogais)… aí, resolvi me aboletar aqui no quartinho dos monitores, pra ficar vigiando o povo…
-
Então a senhora surtou depois que o BBB acabou? É isso? E deve tá
achando que tá no quarto do líder, né?
-
Exatamente!!! E comprei até o roupão oficial (tira-o de dentro da
bolsa vermelha). Chegou ontem… e outra: aqui (ela aponta para os
monitores) nem preciso usar seu cartão pra pagar os canais
exclusivos de assinante… só o roupão. Muito franca!
-
Como assim “meu cartao”? Eu que tô pagando o roupão??
Ela
tenta me engabelar...
-
Xiiiii…. Seu Gil: olha a hora do serviço! Chame JÁ outro Úbe !!! (desconversa).. olha a hora do
serviço, heim? Aqui é vida real, alguém tem que trabalhar de verdade HAHAHAHAHAHAHAHAHA
-
Pois acabei de colocar a senhora no paredão! E a notícia é que a
senhora é a única indicada…
-
Ah! Mas fique feliz, porque tô fazendo amizade com vááááários
outros porteiros, num grupo de zatzat…
-
Pelamor… E por que eu deveria ficar feliz com isso? O que muda na
minha vida?
-
Ué, bocó: fique feliz porque o porteiro do prédio da Eduarda
acabou de entrar pro grupo…
- Lourdinha!!! Você acaba de ganhar o BBB com 100%!!!
- Lourdinha!!! Você acaba de ganhar o BBB com 100%!!!